Chegamos a ela vindos de Foz do Iguaçu, do lado brasileiro. Juntamente com Puerto Iguazu, do lado argentino, estas três cidades compõem uma região denominada “Tríplice Fronteira”. Atravessando a “Ponte da Amizade”, duas impressões me vieram logo à mente.
A primeira referia-se a uma alusão ao nome da ponte, escrita numa placa: “À eterna amizade entre Brasil e Paraguai”, selada na comemoração aos seus 40 anos de construção. Imediatamente pensei nas palavras de Eduardo Galeano, escritor uruguaio, em seu célebre livro “As Veias Abertas da América Latina”, quando nos fala da “Guerra da Tríplice Fronteira” (1865-70) em que o Paraguai foi o maior derrotado: “...o Paraguai era o único país da América Latina que não tinha mendigos, famintos nem ladrões” (p.246). Destruído numa guerra financiada por uma Inglaterra imperialista – os Estados Unidos tomam de sua “mãe” o título de “maior império” após a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) – cheia de interesses econômicos e políticos expansionistas, o Paraguai foi obrigado a pagar mais duramente o ideal de deixar de ser “eterna colônia”, ao contrário de seus invasores brasileiros, argentinos e uruguaios. Eis aí as nefastas conseqüências da “necessária” luta por novos espaços para a acumulação capitalista da riqueza. Pelo visto eu tenho um prazer mórbido por placas: são um poderoso meio de transformar grandes mentiras em verdades históricas!
A segunda impressão veio ao mesmo tempo e em seguida: estávamos entrando numa cidade que é considerada o terceiro maior centro de comércio do mundo, atrás somente de (Miami e Hong Kong), sendo, portanto, economicamente rica e pujante – o que não quer dizer que desenvolvimento econômico leve, necessariamente ao chamado “desenvolvimento social”. A propaganda é observada ainda na ponte quando se avista os grandes out-doors anunciando eletro-eletrônicos de última geração abrindo um primeiro plano em relação aos grandes modernos edifícios ao fundo. Como soa absurdo dizer que propagandas, discursos ou notícias não possam ser manipulados por pessoas ou grupos que possuam este poder, comecei a aguçar um pouco mais os sentidos: estávamos entrando no Paraguai.
Ciudad Del Leste, à primeira vista, parece respirar comércio. Ou melhor: acho que o comércio parece deixar aquela cidade irrespirável, sufocante. A vida das pessoas de lá parece só ser possível se elas se entregarem aos imperativos do comércio e da mercadoria. Cada um parece ter uma missão, designada para ele como “destino”, desde sempre e para sempre. Recebe-se o “dom” (que precisa ser afirmado através de esforço constante, pois um reafirma o outro) de ser dono de alguma loja (grande ou pequena) ou, mais ainda, ser dono de uma rede de lojas, de shoppings inteiros! Há também, como em qualquer outra cidade, os políticos, os juízes, advogados, funcionários públicos graduados, em suma, aqueles que ajudam a controlar, ordenar e, assim, governar Ciudad Del Leste.
Infelizmente (“a vida é assim!”), a grande maioria, receberá a incumbência (desde sempre e para sempre) de “sobre-viver das sobras dos donos”. Poderão ser empregados dos donos maiores ou de outros tantos donos menores, camelôs, prestadores de serviços (tomadores de conta de carros, engraxates, prostitutas, pedreiros, serventes, pequenos ou grandes traficantes de drogas, armas, seres humanos), pedintes, mendigos, etc, etc.. Contudo, se querem subir de posto, subir pelas escadas da hierarquia social, devem se esforçar, nunca desistir. Do contrário, permanecerão onde estão, por culpa de si mesmos, por culpa de sua “preguiça e incapacidade”, as quais eles mesmos, por incrível que pareça, também se culpam. O que muito se aprende diariamente como algo também aparentemente natural é que “a vida, sendo o que é, é ainda mais implacável com aqueles que fraquejam!”.
Abro um rápido parêntese para dizer que chamo a esta aparente “sina” que acomete os homens de “naturalismo”. Essa construção ideológica leva os homens (e muitos daqueles que se põem a “decifrar o mundo”, como vários filósofos, economistas, sociólogos, geógrafos, etc) a tratar suas experiências e ações como se elas estivessem “fora” da moldura contextual a que estão vinculadas.
Voltando às “vacas frias”, é por isso que todos estão “incluídos socialmente” de alguma forma, fraquejando ou não, inclusive os mendigos! As “escórias” da sociedade também são exemplo, aquilo que não se deve ser ou fazer. São consumidores, ainda que marginais. Podem consumir um cigarro picado, uma dose de “pisco”, uma meia de 2000 guaranis (que corresponde a 1 real), um pequeno brinquedo fabricado na China ou Singapura para seus filhos, um pão francês na mercearia... Ou seja, riqueza e pobreza se completam; não se excluem, como muitos pensam. Tais características são próprias de todas as cidades onde a forma de organização política e econômica segue os moldes da sociedade (que aqui chamamos de capitalista, liberal e moderna): ou seja, todas as cidades, ora! Em qualquer cidade, pequena ou grande, a vida social é regida por esta norma aparentemente natural. Volto a repetir: há também lutas, há tensões, muitos explorados, expropriados de si mesmos, voltam-se contra seus exploradores. De maneira mobilizada e contundente (como os movimentos sociais indígenas na Bolívia, por exemplo) ou de maneira mais pulverizada, imediatista, consciente e até conservadora (excetuando uns poucos movimentos mais organizados, a maior parte dos protestos diversos no Brasil da atualidade).
Em meio a tudo isso, em Ciudad Del Leste compra-se e vende-se qualquer coisa: tudo vira mercadoria! A dignidade pessoal (não raro também transformada em “coisa”) muitas vezes é uma das primeiras a serem vendidas. Alguns poucos têm poder para comprar um produto parecido, que na propaganda feita nas “altas rodas” engana muito bem! Pois é, quem dispõe de muito dinheiro naquela cidade, além de poder comprar e usufruir alegremente da dignidade falsa, se dá bem naquela cidade, geralmente possuindo (e fazendo questão de mostrar que possuem) belos carros, casas confortáveis. Muitos outros, na sua grande maioria muito dignos, não são reconhecidos em sua dignidade; ou o são, embora sejam meras bestas, incapazes de serem líderes e heróis neste mundo. Na sua grande maioria, como eu disse antes, devem se contentar com as sobras. Se tiverem a sorte de vir a possuir uma casinha na periferia da cidade...
Já ouvi muitos que foram a Ciudad Del Leste dizerem que ela, tal qual seu país, não é desenvolvida e nem é moderna; é, isso sim, pobre e atrasada. Não aceito essa oposição. Assim como eu disse acima, ambas as características se completam, pois são resultado do mesmo processo, ainda que este se realize ali ou em qualquer outro lugar de muitas maneiras. As crianças e as mães que conversavam no idioma Guarani que vimos na periferia da cidade, assim como os grandes shoppings centers da avenida principal, são resultado e condição do mesmo processo de desenvolvimento. Afinal, des-envolver significa retirar do envolvimento, arrancar algo de sua relação anterior. Significa “arrancar”, expropriar aquelas mulheres de seu modo de vida e de seu jeito de ser originais: de tê-las obrigado, por exemplo, a imigrar do campo para a cidade, de fazê-las enfrentar as piores condições possíveis, oferecendo a elas em troca, a pobreza de possibilidades de viver a vida, não obstante essas mesmas possibilidades tenham sido construídas por todos ao longo da história e devessem, portanto, serem distribuídas a todos.
Não falo aqui de pobreza ou riqueza material. Elas são apenas detalhes, não explicam nada, apenas ajudam a enganar mais. Mesmo aqueles que são tidos como muito ricos (pois possuem dinheiro para comprar aparentemente o que quiserem), cada vez mais têm vivido uma vida de muita miséria, pois, em última instância, deliberam muito pouco sobre suas vidas. Ou vocês acham que o presidente da General Motors é senhor, por exemplo do seu próprio tempo? Poderíamos estar todos desfrutando dessa riqueza (da qual a material é uma delas), mas estamos desfrutando de uma imensa miséria, uns muito mais que os outros, já que são impedidos (e lutam de uma maneira ou de outra diariamente contra isso) de obter até mesmo a mera sobrevivência. Fiquei novamente pensando nas palavras de Eduardo Galeano, quando me veio à cabeça como deveria ser a capital paraguaia: “Em Assunção, a escassa classe média bebe uísque Ballantine’s em vez de tomar cachaça paraguaia. Se descobrem os últimos modelos dos mais luxuosos fabricados nos Estados Unidos ou Europa, trazidos ao país como contrabando ou como pagamento prévio de minguados impostos, ao mesmo tempo vêem-se pela rua carros puxados por bois que levam lentamente frutos ao mercado...”
Desta forma, Ciudad Del Leste, assim como tantas outras cidades, segue vivendo suas imensas contradições: carros de última geração passeando em ruas esburacadas; condomínios fechados com casa de alto padrão separados por muros altos, seguranças armados, preconceito e apartação social das imensas favelas. Mulheres maquiadas e perfumadas, bem vestidas e adornadas falando ao celular com alguém, talvez tendo de se esconder de seu vazio e solidão interiores; meninos cuja infância se perde numa precoce fase adulta carente de perspectivas. Enfim, uma existência que leva a uma luta diária e de ética muitas vezes desprezível de pessoas – contra si e contra os outros – para buscar um mínimo quinhão de sobrevivência. Parecem todos entregues à própria sorte, com o “salve-se quem puder” permeando os pensamentos. As intervenções coletivas mais profundas parecem estar submersas no oceano da passividade de muitos daqueles homens e mulheres. O melhor é contar com a ajuda de Deus ou do Diabo, de si mesmo, ou, quem sabe, de alguém que conhece os tortuosos caminhos da corrupção institucionalizada. Mas será que é só isso mesmo?! Será o “fim da história”?! Eu prefiro dizer (e acreditar) que não! Algo do possível será dito, descrito e analisado nos próximos textos. Aguardem!!
por Luiz
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