terça-feira, 31 de julho de 2007

óculos mágicos

Ainda não escrevi na Bolívia e não sei se conseguirei. Não sei se algum dia poderei transmitir fielmente todo o turbilhão de sentimentos. Sinto-me em um tornado de impressões que se confundem e acabo não sabendo onde termina uma e começa a outra. Onde eu termino e começa o que vi e aí então observei, senti. Não sei onde começa o mundo da chola vendedora de limão e das crianças descalças no frio da manhã da mais alta montanha e onde termina o meu. Não sei até que ponto que as minhas tristezas são tristezas de onde estou.

A Bolívia consegue despertar em mim mil coisas ao mesmo tempo. Já na fronteira com a Argentina, começa uma onda de burocracias. Foi mais ou menos uma hora de cópias e formulários que me irritaram profundamente. O chamado “controle de migração” cheirava mal e era bege, fosco. Era como se eu estivesse usando óculos com lentes de acrílico riscadas e empoeiradas. Quem carimbou meu passaporte era um adolescente de 18 anos meio que saído do “programa primeiro emprego “lulesco”, mas boliviano. O curioso é que o garoto tinha o cabelo espetado pra cima no melhor estilo “cyber-mano”, mais pra “mano” do que pra “cyber”. Ele era mais um dos pseudo-góticos que lotam a praça da Savassi tomando vinho Chapinha, tão tipicamente brasileiros, belorizontinos. Fazendo o possível pra ser parecido com algum personagem do “Rebelde”, ele tinha a unha do dedo mindinho grande e usava blusa de time de basquete dos Estados Unidos. Nada mais natural que me tome esta confusão mental, que já sendo tão própria de mim, se torna maior em Villazón, onde tudo é muito rápido, exceto a passagem na imigración, naturalmente, mesmo com uma hora a mais no fuso. Todos falam muito rápido, talvez pra que não os entendamos bem. Falam rápido e em quetchua, o que torna a comunicação mais complicada do que sempre foi. Dirigem enlouquecidamente – pelo menos para os meus parâmetros - e muito rápido. E tudo isso é absolutamente normal, mesmo estando com os óculos imaginários, que me fazem ver tudo marrom e enuveado. Fiquei pensando se os óculos não pudessem ser óculos mágicos que me fariam entrar por aquele portal e me sentir parte daquilo tudo naturalmente, mas isso não aconteceu...

A estação de trem de Villazón, por exemplo, parece cenário dos filmes de Crocodillo Dundee, quase desértica quando cheguei, sem água nem banheiro, nem passagens suficientes.

Um anjo salvador com cara de general reformado apareceu vendendo suas passagens e pudemos embarcar, mas não pra Uyuni. Fomos para Oruro, que foi pra onde a nossa famigerada nos levou. Era o primeiro imprevisto previsto no território do Sr. Morales: querido, adorado e imitado por lá até agora. O trem era normal aos meus olhos, que provavelmente já estavam sob o efeito ativo dos óculos mágicos, o que me deixou bem feliz. Viajar de trem foi ótimo, longe de estradas por um tempo. Fico receosa de estar sendo provinciana e boba, ao ter tentado e conseguido evitar por hora as estradas bolivianas. Fico com medo do que penso, do que acho que sei e do que, mais do que nunca, podem pensar de mim. O fato é que nossas peripércias em Buenos Aires – mais do que no Rio ou em São Paulo – me deixou medrosa e um pouco covarde, com medo de que minha insegurança seja algo de plausível. Medo sentir um medo que seja louvável e que não denote covardia e doença, mas sim um zelo que possa me frear, assim como mamãe gostaria. Sempre fui meio destemida e não queria perder isso.

No caminho entre Tilcara e La Quiaca, deparei-me com uma Argentina totalmente rural, indígena. Na verdade era uma pequena amostra da irmã mais pobre. Sem me prender se aquilo era Argentina ou Bolívia ou qualquer outro nome de lugar, pois isso não me interessa, foram imagens impressionantes demais pra alguém como eu. Não me impressionei com a presença do indígena tão de perto ou com as cores que vi em pleno sertão. Não é por aí. Isso tem no National Geografic todos os dias e dependendo do meu estado de humor diário até mando colaboração via correio eletrônico. O fato é que nunca fui militante, engajada, afetada no compromisso com grandes causas ou causas nobres. Mas também nunca fui ignorante a ponto de não identificar a minha vida e as dos outros com suas nuances. O que posso garantir é que sempre desconfiei dos “ismos”, sou excelente observadora e, sem modéstia, uma pessoa honesta. Acreditei no Lula, como muita gente. Assiti a muito programa Sílvio Santos e já até segui novela da Globo, o que nas esferas ditas intelectuais, é uma heresia. Mas mais do que isso, sei que não há mocinhos e que bandidos somos nós todos. Que seja um pouco. Que seja a cada dia.

A desgraça que afeta certas regiões do meu país e destes aqui não tem remédio, é incomensurável, feia e imoral. Nunca inventei mundos cor de rosa nem pra mim, nem para os outros, mas só agora pude ser tocada da dimensão de muita coisa.

Eu nunca vi de perto a seca do nordeste. A maioria das gentes brasileiras nunca viu. Nem os alagados amazônicos. Vi favela fazendo samba e com uma certa “graninha” pra comprar DVD, celular, estas coisas que todo o mundo quer. Vi muito brasileiro felizinho. Não tive oportunidade de ver o grosso do grosso como agora. Talvez porque o grosso do grosso esteja presente aqui sempre em qualquer lugar.

Oruro, por exemplo, é uma típica cidade boliviana na íntegra. Não é oficialmente nada: nem turística, nem produtora disto ou daquilo. Está longe de ser um pólo industrial. Ela é só uma cidade. Uma cidade de gente simples, que respira o suspiro de alguma identidade, que suplica sua dignidade tribal, principalmente nas classes mais baixas: os ditos “desaculturados” e “sem educação”.

A vontade de mudança, o engajamento, a revolta da sua condição me contaminou. Foi impossível não enxergar Oruro pelos olhos deles, pelos olhares de súplica e profundo conhecimento da vida que levam e da condição que têm. Não me julgo idealista, busco a realidade, sou sempre a favor da verdade, mesmo ela sendo feia e imoral. Essa situação tão triste não muda fácil. Talvez seja o efeito dos óculos mágicos...

terça-feira, 24 de julho de 2007

sem título

Nada melhor do que rezar para ficarmos bem, bem-humorados, alegres e tranqüilos. Não rezei ontem a ponto de curar meu mau-humor. Mas rezei o de sempre, como sempre. Sem grandes falatórios nem promessas. Agradeci.



O que curou minhas mazelas sentimentais foi Deus. Deus sem oração aparente. Posso dizer que vi Deus na natureza de uma maneira minha, pois vi a imensidão que me fez sentir menor, mesquinha e pequena. Fui entregue à pequenez, nome que dou àquele sentimento que me ocorre nos raros momentos de lucidez, que me mostra como os problemas cotidianos quase sempre são ridículos, ou mesmo quando não são - que é quando ignoro, raciocino ou faço o meu melhor - podem ser diminuídos tanto a ponto de nem existirem, de serem devaneio, zero à esquerda, roupa que não se usa mais e tem que ser posta pra fora do armário. Isso raramente acontece comigo mesmo sabendo a diferença óbvia, porém obscura entre pensamento e raciocínio. A grandiosidade das montanhas, dos desertos, dos pedregulhos e desfiladeiros é tanta que me fez perder os pensamentos e dentro do paradoxal oxigênio escasso das alturas, encheu minha mente de certezas e belezas. Vi como a vida é boa, como sou saudável, como tenho amor. Sem oxigênio pude raciocinar com clareza e serenidade.



Vi desertos, desfiladeiros, cactos gigantes, campos verdejantes no meio de um não menos imenso pedregulho sem fim. Vi salares e montanhas nevadas no verão. Salares que um dia foram mar, como se eu estivesse no meio do que um dia foi o fundo do mar. Vi pessoas que vivem do sal. Que literalmente não plantam nada, não criam nada. Que esperam nada. Que literalmente dormem e comem do sal, para e por causa do sal. Talvez comam mal ou morem mal igualmente por causa do sal. Homens com cara de guerrilheiros. Ou melhor: sem cara, já que a escondem dos maiores inimigos onipresentes: o sol e o sal. Fazem artesanatos muito simples de sal, vivem em casas feitas de sal. Como iglus de sal. Correção: máscaras de guerrilheiros.



Não gostei do que vi. Morrem aos 40 anos de tanto sal. Crianças trabalhando no sal e que viverão o resto dos seus 30 anos de vida naquela imensidão alva e apolar. E viverão até lá curiosamente com energia fotovoltaica, internet, água fria e água quente. Parece que o governo deu. Pelo menos foi isso que eu pude constatar na mais remota choupana a 4010m de altura, onde não há ar pra respirar.

O chão é feito de colméias de vidro opaco. É uma neve quente, muito quente, menos à noite quando no inverno -15 é garantido.

Vi turistas idiotas mergulharem nos tanques menores e tirarem fotos ridículas. Os um pouco menos idiotas compravam pequenas esculturas deprimentes feitas por aqueles não menos deprimentes homens e crianças. Estranho não haver mulheres. As esculturas eram basicamente lhamas e cactos, cactos e lhamas e pequenos cristais que eram pesos de papel. Difícil ter criatividade num lugar como aquele: infinitamente belo e infinitamente rude. Fiquei envergonhada por estar ali. Por ter pagado AR$20 pelo “passeio” enquanto a lhama salgada custava AR$1. Fiquei menos envergonhada por ser brasileira, o que é uma infinita bobagem... Mas ali, juro que senti!