terça-feira, 22 de maio de 2007

são francisco de assis





O clima de Jujuy é outro. Ou aqui é diferente ou eu é que fiquei diferente ao chegar aqui. Ou pude receber o afago carinhoso do meu pai ao telefone e aí curtir mais deixando as moléstias psíquicas adormecidas. Estamos curtindo a cidade agora, tomando café e comendo o que os nativos comem. Estou muito feliz neste momento pois me deparei com São Francisco de Assis, o que sempre me deixa bem. Por dois motivos: por me fazer lembrar de Marla, grande amiga e conselheira, e por ele ter sido gente boa, ao que consta. Gostava de crianças, de bichos e de plantas, que é o que realmente vale a pena. Gosto de gente do bem: Marla, meu pai e São Francisco de Assis.



sábado, 5 de maio de 2007

"Confraternização universal"

Há circunstâncias em nossa vida que somente depois de algum tempo, depois de uma espécie de “digestão do acontecido”, iremos nos dar conta de quão irônicas elas podem ser. Refiro-me aqui ao dia 1º de janeiro, comemorado em todo mundo como “Dia da Confraternização Universal”, data em que homens e mulheres de todos os cantos se permitiriam não só refletir acerca de seu estar no mundo, da sua relação com o próximo, mas também transformar esse exercício reflexivo em ações, numa atuação em consonância com os princípios cristãos da fraternidade e do amor.

A ironia a qual mencionei, no meu entender, manifesta-se na medida em que as contradições entre o ser e o parecer acirram-se e, por sua vez, geram a negação. Acirram-se porque a instituição de uma data para um possível exercício de reflexão e ação não é mais suficiente para contagiar os ânimos, já tão arrefecidos pela concretude atroz do viver a vida. Geram a negação porque o dito arrefecimento dos ânimos é o sinal claro do nó górdio entre o que foi transformado em possível e o que é oferecido pela civilização. Em verdade, a palavra ironia no meu entender é bastante “adocicada” nos termos em que a propus. Todavia, ela serve de provocação, um alerta ou uma dúvida entre o que fazer: mostrar em dose homeopáticas ou trazer à tona, em toda sua dimensão, o que chamei acima de concretude atroz.
Nada como verificar as contradições em espaços e tempos dos quais não temos intimidade. Mesmo sabendo que isso não passa de um devaneio do cientificismo positivista ainda tão presente neste mundo, a falta de intimidade com o lugar parece nos proporcionar um “certo distanciamento”. Calma, é apenas brincadeira de minha parte! Entendo, isso sim, o desconhecido como um interessante passaporte para a deliciosa possibilidade do “susto”, para o aguçamento do olhar e dos ouvidos, uma maior abertura dos poros para a apreensão e a possível análise do diferente.
Estando de férias na Argentina, tendo a oportunidade de beber da fonte do desconhecido, como então não se deixar levar pela caça às contradições? E pareceu que o dia da “Confraternização Universal” reservaria poucas e boas, trazendo confusão à consciência, erguendo dentro dela novas janelas.

Assim sendo, nos aventuramos a percorrer uma villa miséria conhecida como “Bajo Flores”, mais um desses aglomerados erguidos no seio do processo de urbanização (no caso, o argentino) reprodutor das condicionantes da marginalização social. Noutros termos, no contexto da complexificação e do aprofundamento da modernização capitalista naquele país. Ou ainda: seria dizer que presenciávamos a curva descendente da falta de vergonha dos donos do mundo, a partir da qual o que se vê é a clara deterioração das condições do viver a vida neste mundo.

O supracitado contexto, no caso de Buenos Aires, traz à cena o grande afluxo de imigrantes de países vizinhos (Bolívia, Paraguai, Peru, por exemplo) e também argentinos oriundos de províncias onde a modernização-deterioração capitalista se revelou, por exemplo, na forma do agronegócio (expulsando famílias inteiras do campo ou obrigando-as a trabalhar sob péssimas condições). Contexto que pode também ser pensado a partir do paradoxal surto de “bem-estar” verificado quando Carlos Menem esteve à frente da Presidência da República, o qual executou com firmeza o utopismo do capital movimentando-se sem peias, como se fosse possível (a história vem confirmando isso) a “mão invisível” do mercado regular a vida para melhor.
“Bajo Flores”, para não deixarmos de dizer, é uma villa habitada em sua imensa maioria por bolivianos, tendo também a presença – numa quantidade bem menor – de argentinos do norte e do Chaco (sendo esta última uma região tida como muito pobre, talvez porque o moderno não “chegou” se im-pondo como totalidade). Está incrustada em “Nueva Pompeya”, bairro de tradição industrial, mas que a partir de meados da década de 80 viu suas indústrias fecharem as portas abandonando à própria sorte suas plantas industriais e seus antigos funcionários. Quem assistiu a “Roger e eu” (documentário produzido por Michel Moore) ou “Segunda-feira ao sol” sabe do que eu estou falando...

“Bajo Flores” é o exemplo claro, um microcosmo perceptível de uma sociedade que vive a contradição entre a homogeneização e a fragmentação. Homogeneíza-se pelo alastramento do modo de ser e viver dominantes aos diversos redutos da vida, pela imposição de tempos e espaços que vão deixando de pertencer às pessoas, pela condenação à marginalidade de parcelas cada vez maiores dessas mesmas pessoas. Fragmenta-se porque a própria homogeneização tende a sacrificar o vínculo social, a produzir rupturas quase que obrigatórias nas comunidades, levando as pessoas a terem de optar entre práticas cada vez mais individualistas (supostamente benéficas num mundo onde a falta de oportunidades outras que não aquelas imperiosamente impostas parece crônica).

Ainda assim há espaço (como área e como relação) para algum tipo de resistência a este avassalador processo que toma de assalto o vínculo social, seja ela consciente ou inconsciente. É preciso que as pessoas do lugar estejam atentas ao sentido e ao significado da resistência a se operar.

Há espaço para o diferente, para práticas – necessárias numa comunidade como a dos bolivianos, estando esta à mercê de todo tipo de discriminação e hostilidade – reunificadoras do sentido de comunidade. O que são a reunião de bolivianos para almoçar e conversar nas calçadas externas de “Bajo Flores” senão tentativas de promoção da vida comunitária? Penso também nos bolivianos erradicados na metrópole paulistana, que reconstituíram a festa de uma de suas padroeiras, realizando-a numa movimentada praça para que todos (bolivianos ou não) possam dela participar. Eis aí a afirmação de novas territorialidades a partir da qual solto uma deixa: torna-se necessário que o conhecimento verifique quais campos de possíveis lá se inscrevem!
Por isso tudo, há espaço para práticas dadas fora do institucional e do hostil “mundo oficial”, caracterizadas por usos que em ampla medida não estão atrelados às formas mercantis (embora suas construções subjetivas povoem, decerto, o imaginário), como verificamos no caso das mães sentadas, conversando entre si no gramado em frente à villa observando suas crianças brincarem.

Por outro lado, todas as possibilidades verificadas no bojo das práticas acima mencionadas convivem com o constante perigo das estratégias e ações consertadas visando a desagregação de qualquer traço realmente subversivo. No entanto, tais estratégias e ações são dissimuladas pelo discurso “integrador” do Estado, criando “projetos de desenvolvimento” em comunidades, forçando a competição individual e as solidariedades instrumentais. Eis aí o perigo trazido por outros elementos da desagregação: a incompreensão pairando junto aos jovens em estado de delinqüência, criando na comunidade representações negativas acerca de seu comportamento.

Que este momento de crise, manifestado no descrédito atual com as possibilidades da “Confraternização Universal” nos sirva como (mais uma) lição acerca das (im)possibilidades do estado de coisas presentes na nossa sociedade. Quem sabe algum tipo de “todo ódio à passividade controlada” tome conta de nós e crie aos poucos um sentimento de “construção coletiva da destruição do modelo de sociedade existente”? É o que continuamos esperando!