sexta-feira, 10 de agosto de 2007

las cholas






As cholas são as mulheres mais trabalhadeiras, parideiras, glutonas e elegantes que já conheci. Não importa a hora do dia ou da noite, elas estão trabalhando. Vendem de tudo: balas, batatas fritas, pilhas, chocolate, sorvete, gelatina... e na proporção que vendem, comem o que vendem. Tem chola que trabalha de pedreiro. Vi várias e nem por isso dispensam a saia rodada, o chapéu enfeitado, sandálias e meia-calça. Incrível. O tempo pode estar sequíssimo como o que sangrou nossos narizes e quebrou a nossa pele, ou pode fazer chover leve ou forte, que elas estarão em toda parte, surgindo como seres mágicos de todos os lados, sempre no mesmo compasso. São todas iguais e ao mesmo tempo todas diferentes.


Sempre me perguntava onde estariam os homens de Oruro: os de meia-idade. Jovens havia muitos, alguns anciãos com cara de espanhóis, de terno, banho tomado e brochinho das forças armadas na lapela. Mas eu procurava os homens que porventura fizessem par com as cholas, já que a maioria delas levava uma criança, muitas vezes recém nascida nas costas, quando não eram duas e a outra já vinha andando, vendendo trocinhos ou mesmo treinada pra pedir alguma coisa qualquer, sempre numa constante súplica.

Foi bom ir a Oruro e não ir a Uyuni. Já tive uma pequena amostra do que podem ser salinas e salares. Como tudo ali pode ser mágico e parece estar envolvido na manta do tempo, como se tudo ficasse congelado e Deus só tivesse dado “play” no momento da minha chegada. Como se não houvesse resto do mundo e somente eu. É mais ou menos quando a gente era criança e parecia que não havia vida além da nossa. Acreditávamos que o mundo parasse enquanto dormíamos e continuava no momento do nosso despertar. Se fosse assim, eu poderia acordar e ir para as salinas e as teria só pra mim. Delírio... Acho que isso é coisa de filho único, o que também pode ser bom, pois nós, os filhos únicos, somos exímios observadores. Eu sou.

terça-feira, 31 de julho de 2007

óculos mágicos

Ainda não escrevi na Bolívia e não sei se conseguirei. Não sei se algum dia poderei transmitir fielmente todo o turbilhão de sentimentos. Sinto-me em um tornado de impressões que se confundem e acabo não sabendo onde termina uma e começa a outra. Onde eu termino e começa o que vi e aí então observei, senti. Não sei onde começa o mundo da chola vendedora de limão e das crianças descalças no frio da manhã da mais alta montanha e onde termina o meu. Não sei até que ponto que as minhas tristezas são tristezas de onde estou.

A Bolívia consegue despertar em mim mil coisas ao mesmo tempo. Já na fronteira com a Argentina, começa uma onda de burocracias. Foi mais ou menos uma hora de cópias e formulários que me irritaram profundamente. O chamado “controle de migração” cheirava mal e era bege, fosco. Era como se eu estivesse usando óculos com lentes de acrílico riscadas e empoeiradas. Quem carimbou meu passaporte era um adolescente de 18 anos meio que saído do “programa primeiro emprego “lulesco”, mas boliviano. O curioso é que o garoto tinha o cabelo espetado pra cima no melhor estilo “cyber-mano”, mais pra “mano” do que pra “cyber”. Ele era mais um dos pseudo-góticos que lotam a praça da Savassi tomando vinho Chapinha, tão tipicamente brasileiros, belorizontinos. Fazendo o possível pra ser parecido com algum personagem do “Rebelde”, ele tinha a unha do dedo mindinho grande e usava blusa de time de basquete dos Estados Unidos. Nada mais natural que me tome esta confusão mental, que já sendo tão própria de mim, se torna maior em Villazón, onde tudo é muito rápido, exceto a passagem na imigración, naturalmente, mesmo com uma hora a mais no fuso. Todos falam muito rápido, talvez pra que não os entendamos bem. Falam rápido e em quetchua, o que torna a comunicação mais complicada do que sempre foi. Dirigem enlouquecidamente – pelo menos para os meus parâmetros - e muito rápido. E tudo isso é absolutamente normal, mesmo estando com os óculos imaginários, que me fazem ver tudo marrom e enuveado. Fiquei pensando se os óculos não pudessem ser óculos mágicos que me fariam entrar por aquele portal e me sentir parte daquilo tudo naturalmente, mas isso não aconteceu...

A estação de trem de Villazón, por exemplo, parece cenário dos filmes de Crocodillo Dundee, quase desértica quando cheguei, sem água nem banheiro, nem passagens suficientes.

Um anjo salvador com cara de general reformado apareceu vendendo suas passagens e pudemos embarcar, mas não pra Uyuni. Fomos para Oruro, que foi pra onde a nossa famigerada nos levou. Era o primeiro imprevisto previsto no território do Sr. Morales: querido, adorado e imitado por lá até agora. O trem era normal aos meus olhos, que provavelmente já estavam sob o efeito ativo dos óculos mágicos, o que me deixou bem feliz. Viajar de trem foi ótimo, longe de estradas por um tempo. Fico receosa de estar sendo provinciana e boba, ao ter tentado e conseguido evitar por hora as estradas bolivianas. Fico com medo do que penso, do que acho que sei e do que, mais do que nunca, podem pensar de mim. O fato é que nossas peripércias em Buenos Aires – mais do que no Rio ou em São Paulo – me deixou medrosa e um pouco covarde, com medo de que minha insegurança seja algo de plausível. Medo sentir um medo que seja louvável e que não denote covardia e doença, mas sim um zelo que possa me frear, assim como mamãe gostaria. Sempre fui meio destemida e não queria perder isso.

No caminho entre Tilcara e La Quiaca, deparei-me com uma Argentina totalmente rural, indígena. Na verdade era uma pequena amostra da irmã mais pobre. Sem me prender se aquilo era Argentina ou Bolívia ou qualquer outro nome de lugar, pois isso não me interessa, foram imagens impressionantes demais pra alguém como eu. Não me impressionei com a presença do indígena tão de perto ou com as cores que vi em pleno sertão. Não é por aí. Isso tem no National Geografic todos os dias e dependendo do meu estado de humor diário até mando colaboração via correio eletrônico. O fato é que nunca fui militante, engajada, afetada no compromisso com grandes causas ou causas nobres. Mas também nunca fui ignorante a ponto de não identificar a minha vida e as dos outros com suas nuances. O que posso garantir é que sempre desconfiei dos “ismos”, sou excelente observadora e, sem modéstia, uma pessoa honesta. Acreditei no Lula, como muita gente. Assiti a muito programa Sílvio Santos e já até segui novela da Globo, o que nas esferas ditas intelectuais, é uma heresia. Mas mais do que isso, sei que não há mocinhos e que bandidos somos nós todos. Que seja um pouco. Que seja a cada dia.

A desgraça que afeta certas regiões do meu país e destes aqui não tem remédio, é incomensurável, feia e imoral. Nunca inventei mundos cor de rosa nem pra mim, nem para os outros, mas só agora pude ser tocada da dimensão de muita coisa.

Eu nunca vi de perto a seca do nordeste. A maioria das gentes brasileiras nunca viu. Nem os alagados amazônicos. Vi favela fazendo samba e com uma certa “graninha” pra comprar DVD, celular, estas coisas que todo o mundo quer. Vi muito brasileiro felizinho. Não tive oportunidade de ver o grosso do grosso como agora. Talvez porque o grosso do grosso esteja presente aqui sempre em qualquer lugar.

Oruro, por exemplo, é uma típica cidade boliviana na íntegra. Não é oficialmente nada: nem turística, nem produtora disto ou daquilo. Está longe de ser um pólo industrial. Ela é só uma cidade. Uma cidade de gente simples, que respira o suspiro de alguma identidade, que suplica sua dignidade tribal, principalmente nas classes mais baixas: os ditos “desaculturados” e “sem educação”.

A vontade de mudança, o engajamento, a revolta da sua condição me contaminou. Foi impossível não enxergar Oruro pelos olhos deles, pelos olhares de súplica e profundo conhecimento da vida que levam e da condição que têm. Não me julgo idealista, busco a realidade, sou sempre a favor da verdade, mesmo ela sendo feia e imoral. Essa situação tão triste não muda fácil. Talvez seja o efeito dos óculos mágicos...

terça-feira, 24 de julho de 2007

sem título

Nada melhor do que rezar para ficarmos bem, bem-humorados, alegres e tranqüilos. Não rezei ontem a ponto de curar meu mau-humor. Mas rezei o de sempre, como sempre. Sem grandes falatórios nem promessas. Agradeci.



O que curou minhas mazelas sentimentais foi Deus. Deus sem oração aparente. Posso dizer que vi Deus na natureza de uma maneira minha, pois vi a imensidão que me fez sentir menor, mesquinha e pequena. Fui entregue à pequenez, nome que dou àquele sentimento que me ocorre nos raros momentos de lucidez, que me mostra como os problemas cotidianos quase sempre são ridículos, ou mesmo quando não são - que é quando ignoro, raciocino ou faço o meu melhor - podem ser diminuídos tanto a ponto de nem existirem, de serem devaneio, zero à esquerda, roupa que não se usa mais e tem que ser posta pra fora do armário. Isso raramente acontece comigo mesmo sabendo a diferença óbvia, porém obscura entre pensamento e raciocínio. A grandiosidade das montanhas, dos desertos, dos pedregulhos e desfiladeiros é tanta que me fez perder os pensamentos e dentro do paradoxal oxigênio escasso das alturas, encheu minha mente de certezas e belezas. Vi como a vida é boa, como sou saudável, como tenho amor. Sem oxigênio pude raciocinar com clareza e serenidade.



Vi desertos, desfiladeiros, cactos gigantes, campos verdejantes no meio de um não menos imenso pedregulho sem fim. Vi salares e montanhas nevadas no verão. Salares que um dia foram mar, como se eu estivesse no meio do que um dia foi o fundo do mar. Vi pessoas que vivem do sal. Que literalmente não plantam nada, não criam nada. Que esperam nada. Que literalmente dormem e comem do sal, para e por causa do sal. Talvez comam mal ou morem mal igualmente por causa do sal. Homens com cara de guerrilheiros. Ou melhor: sem cara, já que a escondem dos maiores inimigos onipresentes: o sol e o sal. Fazem artesanatos muito simples de sal, vivem em casas feitas de sal. Como iglus de sal. Correção: máscaras de guerrilheiros.



Não gostei do que vi. Morrem aos 40 anos de tanto sal. Crianças trabalhando no sal e que viverão o resto dos seus 30 anos de vida naquela imensidão alva e apolar. E viverão até lá curiosamente com energia fotovoltaica, internet, água fria e água quente. Parece que o governo deu. Pelo menos foi isso que eu pude constatar na mais remota choupana a 4010m de altura, onde não há ar pra respirar.

O chão é feito de colméias de vidro opaco. É uma neve quente, muito quente, menos à noite quando no inverno -15 é garantido.

Vi turistas idiotas mergulharem nos tanques menores e tirarem fotos ridículas. Os um pouco menos idiotas compravam pequenas esculturas deprimentes feitas por aqueles não menos deprimentes homens e crianças. Estranho não haver mulheres. As esculturas eram basicamente lhamas e cactos, cactos e lhamas e pequenos cristais que eram pesos de papel. Difícil ter criatividade num lugar como aquele: infinitamente belo e infinitamente rude. Fiquei envergonhada por estar ali. Por ter pagado AR$20 pelo “passeio” enquanto a lhama salgada custava AR$1. Fiquei menos envergonhada por ser brasileira, o que é uma infinita bobagem... Mas ali, juro que senti!

terça-feira, 22 de maio de 2007

são francisco de assis





O clima de Jujuy é outro. Ou aqui é diferente ou eu é que fiquei diferente ao chegar aqui. Ou pude receber o afago carinhoso do meu pai ao telefone e aí curtir mais deixando as moléstias psíquicas adormecidas. Estamos curtindo a cidade agora, tomando café e comendo o que os nativos comem. Estou muito feliz neste momento pois me deparei com São Francisco de Assis, o que sempre me deixa bem. Por dois motivos: por me fazer lembrar de Marla, grande amiga e conselheira, e por ele ter sido gente boa, ao que consta. Gostava de crianças, de bichos e de plantas, que é o que realmente vale a pena. Gosto de gente do bem: Marla, meu pai e São Francisco de Assis.



sábado, 5 de maio de 2007

"Confraternização universal"

Há circunstâncias em nossa vida que somente depois de algum tempo, depois de uma espécie de “digestão do acontecido”, iremos nos dar conta de quão irônicas elas podem ser. Refiro-me aqui ao dia 1º de janeiro, comemorado em todo mundo como “Dia da Confraternização Universal”, data em que homens e mulheres de todos os cantos se permitiriam não só refletir acerca de seu estar no mundo, da sua relação com o próximo, mas também transformar esse exercício reflexivo em ações, numa atuação em consonância com os princípios cristãos da fraternidade e do amor.

A ironia a qual mencionei, no meu entender, manifesta-se na medida em que as contradições entre o ser e o parecer acirram-se e, por sua vez, geram a negação. Acirram-se porque a instituição de uma data para um possível exercício de reflexão e ação não é mais suficiente para contagiar os ânimos, já tão arrefecidos pela concretude atroz do viver a vida. Geram a negação porque o dito arrefecimento dos ânimos é o sinal claro do nó górdio entre o que foi transformado em possível e o que é oferecido pela civilização. Em verdade, a palavra ironia no meu entender é bastante “adocicada” nos termos em que a propus. Todavia, ela serve de provocação, um alerta ou uma dúvida entre o que fazer: mostrar em dose homeopáticas ou trazer à tona, em toda sua dimensão, o que chamei acima de concretude atroz.
Nada como verificar as contradições em espaços e tempos dos quais não temos intimidade. Mesmo sabendo que isso não passa de um devaneio do cientificismo positivista ainda tão presente neste mundo, a falta de intimidade com o lugar parece nos proporcionar um “certo distanciamento”. Calma, é apenas brincadeira de minha parte! Entendo, isso sim, o desconhecido como um interessante passaporte para a deliciosa possibilidade do “susto”, para o aguçamento do olhar e dos ouvidos, uma maior abertura dos poros para a apreensão e a possível análise do diferente.
Estando de férias na Argentina, tendo a oportunidade de beber da fonte do desconhecido, como então não se deixar levar pela caça às contradições? E pareceu que o dia da “Confraternização Universal” reservaria poucas e boas, trazendo confusão à consciência, erguendo dentro dela novas janelas.

Assim sendo, nos aventuramos a percorrer uma villa miséria conhecida como “Bajo Flores”, mais um desses aglomerados erguidos no seio do processo de urbanização (no caso, o argentino) reprodutor das condicionantes da marginalização social. Noutros termos, no contexto da complexificação e do aprofundamento da modernização capitalista naquele país. Ou ainda: seria dizer que presenciávamos a curva descendente da falta de vergonha dos donos do mundo, a partir da qual o que se vê é a clara deterioração das condições do viver a vida neste mundo.

O supracitado contexto, no caso de Buenos Aires, traz à cena o grande afluxo de imigrantes de países vizinhos (Bolívia, Paraguai, Peru, por exemplo) e também argentinos oriundos de províncias onde a modernização-deterioração capitalista se revelou, por exemplo, na forma do agronegócio (expulsando famílias inteiras do campo ou obrigando-as a trabalhar sob péssimas condições). Contexto que pode também ser pensado a partir do paradoxal surto de “bem-estar” verificado quando Carlos Menem esteve à frente da Presidência da República, o qual executou com firmeza o utopismo do capital movimentando-se sem peias, como se fosse possível (a história vem confirmando isso) a “mão invisível” do mercado regular a vida para melhor.
“Bajo Flores”, para não deixarmos de dizer, é uma villa habitada em sua imensa maioria por bolivianos, tendo também a presença – numa quantidade bem menor – de argentinos do norte e do Chaco (sendo esta última uma região tida como muito pobre, talvez porque o moderno não “chegou” se im-pondo como totalidade). Está incrustada em “Nueva Pompeya”, bairro de tradição industrial, mas que a partir de meados da década de 80 viu suas indústrias fecharem as portas abandonando à própria sorte suas plantas industriais e seus antigos funcionários. Quem assistiu a “Roger e eu” (documentário produzido por Michel Moore) ou “Segunda-feira ao sol” sabe do que eu estou falando...

“Bajo Flores” é o exemplo claro, um microcosmo perceptível de uma sociedade que vive a contradição entre a homogeneização e a fragmentação. Homogeneíza-se pelo alastramento do modo de ser e viver dominantes aos diversos redutos da vida, pela imposição de tempos e espaços que vão deixando de pertencer às pessoas, pela condenação à marginalidade de parcelas cada vez maiores dessas mesmas pessoas. Fragmenta-se porque a própria homogeneização tende a sacrificar o vínculo social, a produzir rupturas quase que obrigatórias nas comunidades, levando as pessoas a terem de optar entre práticas cada vez mais individualistas (supostamente benéficas num mundo onde a falta de oportunidades outras que não aquelas imperiosamente impostas parece crônica).

Ainda assim há espaço (como área e como relação) para algum tipo de resistência a este avassalador processo que toma de assalto o vínculo social, seja ela consciente ou inconsciente. É preciso que as pessoas do lugar estejam atentas ao sentido e ao significado da resistência a se operar.

Há espaço para o diferente, para práticas – necessárias numa comunidade como a dos bolivianos, estando esta à mercê de todo tipo de discriminação e hostilidade – reunificadoras do sentido de comunidade. O que são a reunião de bolivianos para almoçar e conversar nas calçadas externas de “Bajo Flores” senão tentativas de promoção da vida comunitária? Penso também nos bolivianos erradicados na metrópole paulistana, que reconstituíram a festa de uma de suas padroeiras, realizando-a numa movimentada praça para que todos (bolivianos ou não) possam dela participar. Eis aí a afirmação de novas territorialidades a partir da qual solto uma deixa: torna-se necessário que o conhecimento verifique quais campos de possíveis lá se inscrevem!
Por isso tudo, há espaço para práticas dadas fora do institucional e do hostil “mundo oficial”, caracterizadas por usos que em ampla medida não estão atrelados às formas mercantis (embora suas construções subjetivas povoem, decerto, o imaginário), como verificamos no caso das mães sentadas, conversando entre si no gramado em frente à villa observando suas crianças brincarem.

Por outro lado, todas as possibilidades verificadas no bojo das práticas acima mencionadas convivem com o constante perigo das estratégias e ações consertadas visando a desagregação de qualquer traço realmente subversivo. No entanto, tais estratégias e ações são dissimuladas pelo discurso “integrador” do Estado, criando “projetos de desenvolvimento” em comunidades, forçando a competição individual e as solidariedades instrumentais. Eis aí o perigo trazido por outros elementos da desagregação: a incompreensão pairando junto aos jovens em estado de delinqüência, criando na comunidade representações negativas acerca de seu comportamento.

Que este momento de crise, manifestado no descrédito atual com as possibilidades da “Confraternização Universal” nos sirva como (mais uma) lição acerca das (im)possibilidades do estado de coisas presentes na nossa sociedade. Quem sabe algum tipo de “todo ódio à passividade controlada” tome conta de nós e crie aos poucos um sentimento de “construção coletiva da destruição do modelo de sociedade existente”? É o que continuamos esperando!

segunda-feira, 30 de abril de 2007

O "La Boca" como espetáculo e como (im)possibilidade



Dentro da nossa já combinada proposta, decidimos ir a pé de onde estávamos (bairro San Telmo) ao bairro de “La Boca”, visto que os dois bairros estavam separados um do outro por cerca de meia-hora de caminhada. Queríamos ver algo do conhecido bairro que por várias décadas imigrantes italianos, espanhóis, argentinos do norte, moradores pobres da Buenos Aires do final do século XIX e primeira quadra do século XX. La Boca é ainda lugar de gente humilde, de gente de alguma maneira que luta diariamente contra as intempéries de uma vida imposta. Mas é também lugar onde o curioso processo de produção de um espaço teatral embaralha os sentidos e engana os olhos, já que ganha ares de vida real. É como se o absurdo teatro da vida “real”, aquela que nos dias de hoje é “oferecida” aos homens como impossibilidade de se realizar qualquer ideal além daqueles de si próprios, ficasse em suspenso, criando uma sensação de entorpecimento. Uma espécie de “vida falsa” torna-se “verdadeira” naquele lugar. Muitos já não sabem o que é verdade e o que é mentira. Às vezes revoltam-se individualmente e de verdade com a mentira; outras vezes ficam alegres e satisfeitos com a verdade, sabendo (ou não) que ela é uma mentira.



Falo do La Boca de hoje, com seus restaurantes onde o rústico mimetiza-se no sofisticado, das butiques sofisticadas que vendem roupas cujos tecidos outrora eram jogados fora porque não tinham serventia; dos dançarinos de tango que fazem um número a qualquer hora que se pedir, desde que o expectador lhes pague 20 ou 30 pesos.

Falo também de um La Boca não muito longe dali, escondido muito mais pelo desprezo da maioria daqueles que vêm para comer nos restaurantes sofisticados, comprar roupas de preços salgados ou pagar para ver um show de tango, do que por ser longe daquele outro La Boca. Este La Boca de que falo possui cortiços, não tão bem pintados, não tão bem coloridos como o outro. Possui também crianças que brincam na rua, quando sobra um tempinho do trabalho diário de ganhar uns trocados dos homens e mulheres endinheirados que freqüentam o outro. Possui pequeninas lojas que atendem como “pizzerias”, onde comendo ou não se pode sentar nas mesas da calçada e conversar um pouco sobre as curiosidades do bairro, do resultado do último jogo do Boca Juniors, contar e ouvir casos da vida sem muita preocupação com o tempo que insiste em ser escasso e constrangedor.



Aquele La Boca de que primeiro falamos é um lugar que os próprios moradores do bairro não freqüentam ou freqüentam com um sentido muito claro: apenas para fazer algum tipo de serviço e ganhar uns trocados das pessoas que vêm muitas vezes de outros países, que vêm para fazer o turismo e “conhecer” a Argentina e sua capital. É estranho não vermos gente que vai ali sem nenhuma intenção de consumir. E agora não estou falando dos moradores do La Boca, mas das pessoas “de fora” que vão para lá. O La Boca dos turistas parece operar a passividade nos sentidos, de deixar de lado o pensamento e a reflexão para algo de errado que acontece ali, um espaço produzido de verdade, mas que se alicerça na mentira. Que se afirma com algo do que ele já foi um dia utilizando seus símbolos como meras alegorias negando aos seus protagonistas diários (o povo do La Boca: os de ontem e os de hoje!) a parte que lhes caberia na venda pura e simples de sua história.

Um primeiro aspecto, no meu entender, é compreender as estratégias utilizadas pelos agentes que irão intervir e planejar o espaço. La Boca pelo visto possui a tradição dos artistas populares, da arte cultivada em meio às dificuldades (a começar pelo modo através do qual as residências foram construídas)
Ainda assim seríamos levianos em homogeneizar a análise. Há sim uma área estéril, onde a forma mercadoria se faz presente em todos os momentos (dançarina de tango cobrando 10 pesos para tirar uma foto), reificando as relações. Ali a lógica se orienta para a produção de mediações ordenadoras daquilo que outrora seria próprio do viver e da atitude espontânea. Assim sendo, as práticas daí advindas são sumamente tragadas por tais mediações, transformando as primeiras em meros signos (desubstancializando as relações), objetos de compra e venda – porque inscritos como valores de uso canalizados pelo valor de troca. Há também áreas cuja história está ligada à ocupação de imigrantes italianos. Penso nisso quando me deparo com pessoas como Sr... Embora a relação tenha algo de mercantil (compra-se e vende-se algo) há algo além: sentar-se à mesa significa relacionar-se com as pessoas ao lado, ter “um dedo de prosa” mais descompromissado, tendo os apertos do tempo um pouco mais afrouxados, comendo algo.

Buenos Aires, 31/12/06

A chegada a Buenos Aires foi por nós muito aguardada. Afinal de contas, foram vários os meses de expectativa, desde que a capital portenha definitivamente entrou no nosso roteiro de viagem. Sinto que tal expectativa ganhou ainda mais colorido quando, ainda em Foz do Iguaçu, nos deparamos com a possibilidade de não seguir para a Argentina no dia 30 de dezembro, haja vista a falta de passagens disponíveis a partir do Brasil. No entanto, tudo deu certo: acabamos comprando via Internet duas passagens a Buenos Aires partindo de Puerto Iguazu, já no lado argentino.
Enfim, desembarcamos: era começado o delicioso e nada fácil empreendimento de aproveitar ao máximo 5 dias de estada, passeando bastante e tentando viver e captar a dinâmica pulsante do turbilhão da grande metrópole. O terminal de Retiro foi o nosso recpecionista e também o nosso guia, já que foi ali que nos localizamos e aprendemos a nos deslocar no nosso primeiro destino.

quinta-feira, 26 de abril de 2007

salta é uma cidade estranha



Chamam-na de "la linda"... mas o que vi foram agências de viagem de-mais pra cidade de menos. Muitos hotéis, mas não vejo turistas. Foram todos levados pelas mesmas agências para fora de Salta, para os arredores, que é onde turista de verdade gosta.

Fui a Salta mas ainda não vi empanadas. Será que vai ser mais um daqueles meus, digamos, vícios? Lembro-me que fui à Ciudad de Leste e não comprei nada. Pois desta vez, não fracassarei... comerei empanadas salteñas nem que se me custarem AR$12. Na verdade, o que nem me custou AR$12 foi a pulseira linda que ganhei.

Parece ser prata, mas não a prata com a qual estamos acostumados. É uma prata mais fina, fina de espessura que vem dos lingotes de Potosi trazidos pelos próprios bolivianos de lá. Conheci um hoje e infelizmente não me lembro o seu nome. Era um senhor com aquela típica cara de índio com prata literalmente até os dentes. Foi curiosa a minha conversa com ele. Acho inclusive que ele me levou muito à sério. Mais a sério do que muita gente. Imaginem que eu, mulher, estrangeira brasileira, pergunto a ele, com a curiosidade de quem quer sanar suas mini-futilidades permitidas, se encontrarei muita prata em Potosi. Achei que ele fosse me responder: “Ah, claro, hay mucha plata en Potosi, muchos anillos, pulseiras...” Mas isso não aconteceu. Ele me respondeu dizendo que encontraria muita e poderia trazer os lingotes pela fronteira sem problemas! Achei o máximo! Que ironia: eu não sou nada, eu não sou ninguém, mas tenho cara de quem compra lingote de prata e passa com isso na fronteira brasileira pra vender!!!

Aqui não é a mesma Argentina que conheci e que havia antes no meu imaginário. Ou o melhor e mais justo seria dizer que a Argentina é aqui em Salta e no sudeste, onde está Buenos Aires, que sejam os ítalo-espanhóis, mais ítalos com certeza, inclusive na sua soberana e completa elegância e tudo o mais que têm, com todo o envolvimento francês de cidade. Pode-se dizer que a Argentina é aqui: sua origem remota, indígena e tradicional.

Comi, na última hora, empanadas salteñas. Muito boas, são realmente uma iguaria. Massa fina, crocante na parte mais alta, que quebra como uma casca de ovo. Comi aqui mesmo no terminal, de partida pra Jujuy. No terminal de Salta há muita gente viajando como eu. Em sua maioria, argentinos do sul, que vêm periodicamente gastar o que ganharam no norte. Ficam aqui assim sem fazer nada, esperando. E enquanto esperam, comem empanadas exatamente como eu, melancólica e na verdade com um pouco de saudade do Brasil. Saudade de ouvir a conversa de gente comum no ônibus e entender tudo. De comer várias comidas diferentes na mesma refeição. De variedade. De variedade de gente. Mas tá bom.

terça-feira, 17 de abril de 2007

nossos amigos cordobeses ...



Córdoba está pra Belo Horizonte e Buenos Aires está para São Paulo. Córdoba tem muita mistura e os cabelos não são tão avant garde. Cordobeses não gostam de porteños. Porteños são como paulistas, para nós mineiros: de terno, chiques, perfumados, usando Ralph Loren e lanchando nas melhores rotiserias da América do Sul. O cordobês toca violão, anda de bombacha, tem cabelão inteiro de rabo de cavalo, mesmo sendo igualmente italiano. O cordobês quando indígena não é migrante, mas é dali mesmo: o agricultor, o comerciante. Buenos Aires é férias, final de semana, boate e exposições de arte. Córdoba é todo dia, festival de doma e comprinhas na Peatonal. Buenos Aires é milanesa. Córdoba é choripan. Buenos Aires parece ter mais cafés do que kioscos. Córdoba tem seguramente menos cafés do que kioscos, onde compramos cospeles pra andarmos por Córdoba de ônibus.

quinta-feira, 29 de março de 2007

falando de sentimentos ...



Falando de sentimentos, os meninos daqui também jogam futebol o dia todo e sabem de cor o time brasileiro completo, inclusive os reservas. Os argentinos choram as Copas perdidas até hoje. Não esqueceram da última e marejam os olhos de lágrimas. Sabem que nós, ao contrário deles, ensaiamos um choro por dois dias e depois ninguém mais se lembrava daquilo. Argentinos nunca se conformariam com o “arrumar de chuteiras” do lateral esquerdo brasileiro, o Roberto Carlos, na última Copa. Mesmo porque num time argentino isso é impossível de acontecer. Nunca, jamais. Não seria uma maneira argentina de jogar. É isso que chamo de expressividade. É um brio que infelizmente tenho visto pouco por aqui. É lindo ver os caras comuns rodando a camisa, vibrando a mil por hora com o que é tão comum e próprio deles, de seus pais e avôs. Eles também gostam de música de gosto duvidoso. A “cumbia”, uma música meio “calypso”, meio funk, meio arrocha, meio forró, é detestável pra mim, mas deixam todos entorpecidos.... assim como na Copa. Gritam, choram, rodam as camisas de novo, sem nenhum motivo aparente. Bebem enlouquecidamente e só voltam pra casa ás 8 da manhã. Os sentimentos são intensos. Bebem, dançam, choram, rodam a camisa e gritam de novo! Jogam muito. Isso não é lá um jeito Roberto Carlos de ser...